“Um ser humano é mais do que a soma das partes” (AIDA ROLF)
Esta frase dita há um bom tempo atrás continua muito atual.
Isso é chamado de Paradigma da Complexidade. Os componentes interagem entre si e produz um desfecho imprevisível, pela simples presença de cada um desses elementos. A Aida já falava do paradigma da complexidade.
O nosso olhar e abordagem com o ser humano precisa ser sempre assim. E aqui entramos no nosso tema de hoje.
A fáscia é este elemento que traz esta complexidade para o sistema do corpo humano. Logo, não temos como olhar para ela e tratá-la de uma forma simplista ou reducionista.
Para começar a entendê-la, antes, precisamos saber...
Pensando um pouco em anatomia de fáscias, cada região do corpo terá uma organização um pouco diferente. Mas se a gente considerar a fáscia do abdômen, só para começar nossa compreensão, ela terá mais ou menos esta organização da figura acima:
A fáscia superficial é envolta das camadas de gorduras superficiais e profundas. Abaixo dela, existe a fáscia profunda, que é a fáscia que irá recobrir os músculos, seja em camadas de músculos, fazendo seu envoltório, e também dentro de cada músculo, formando perimísio e endomísio.
Por baixo de tudo isso, se continuarmos pensando no abdômen, nós teremos as fáscias que irão envolver as vísceras, que nós chamamos de “fáscias internas”.
Portanto, temos todas estas camadas interligadas. Ou seja, uma alteração numa víscera pode repercutir numa alteração na pele, por exemplo. Nós conseguimos perceber isso palpando a pele, porque a fáscia conecta tudo.
Pensando nesta conexão, agora, podemos pensar na…
Estas transmissões de forças entre músculos e fáscias são organizadas em séries. Um exemplo clássico disso é o grande dorsal com o glúteo máximo contra-lateral, sendo comunicados pela fáscia toracolombar.
Então, algo que acontece no grande dorsal repercute no glúteo, como podemos ver neste experimento aqui de 2010 da UFMG.
Os autores deste experimento deram um estímulo ou de alongamento ou de contração do grande dorsal e perceberam que isso mudava a rigidez do quadril contra-lateral, avaliado por um inclinômetro. Logo, puderam concluir que existe uma transmissão de força entre estas camadas.
Embora existam caminhos que são preferenciais nesta transmissão, na verdade, ela nem sempre segue estes caminhos. Existe um padrão em que tudo é possível, porque o corpo está todo interligado entre si. Ou seja, nem sempre esta transmissão será linear.
E isso abre uma outra questão que precisamos sempre lembrar:
“A transmissão pode seguir cadeias, mas muitas vezes ela não segue cadeias. E ela tem um comportamento que não é linear, que não é previsível.”
Lembra da frase da Aida? Em um sistema complexo, o desfecho é imprevisível.
Pensamos no corpo em camadas quando o vemos num âmbito macro. Mas se formos estudar a fáscia num nível micro, o padrão que os pesquisadores descrevem é caótico.
Contudo, é um caos que tem uma funcionalidade. E no caótico, ela encontra uma adaptabilidade do sistema, tornando seu funcionamento ótimo.
Veja o que Bordoni (2017) e Guimberteau (2011) nos diz:
“No nível micro, o sistema fascial não está organizado em camadas. Fibrilas de colágeno se arranjam num padrão caótico (perfeitamente funcional) para formar microvacuolos (hidratados pela presença de moléculas hidrofílicas). Essa organização permite perfeita adaptabilidade para o sistema. Neste sistema, não há partes separadas, mas um só continuum.”
Isso é fascinante. Caso queiram, podemos falar mais sobre Contração muscular e contração fascial em outro artigo. Diga-nos nos comentários.
O que precisamos do nosso corpo para a sobrevivência e perpetuação da espécie?
Adaptabilidade. Precisamos que nosso corpo se adapte às demandas que temos. Uma delas é estarmos em pé e se movimentando sob efeito da gravidade. E esta adaptabilidade é conquistada com este “caótico-organizado” das fáscias.
Esta transmissão vai acontecendo em níveis mais profundos, até chegar na matriz extra-celular e vias integrinas, que estão presentes nas membranas, isso comunicará no meio intra-celular e vai influenciar o funcionamento de cada núcleo de cada célula.
Ou seja, isso significa que o ambiente onde esta célula está, vai influenciar de forma significativa o que ela irá fazer e produzir. Então, se mudamos o ambiente, mudamos a informação ou a transdução do que acontece em cada célula do nosso corpo.
Essa é a dimensão do que a fáscia traz pra nós. Não é incrível?
Agora, isso nos leva a um ponto muito importante nesta discussão...
Talvez, lá no começo dos estudos, algum jovem olhou para a fáscia como um tecido inerte que liga estruturas entre si. Envolve um músculo, um órgão e liga uma coisa na outra.
Sim, ela faz isso. Porém, faz muito mais do que isso. Sabe por que?
A fáscia é ricamente inervada e vascularizada. Ela “tem célula muscular lisa, fibras de colágeno, capilares fasciais e nervos autonômicos” (Staubesand e Li, 1997)
Ela tem fibroblastos, que dependendo do estímulo, se transformam em miofibroblastos que têm uma capacidade contrátil. A célula é inervada pelo sistema nervoso autônomo e é rica em receptores, que irão gerar ou mediar respostas de diferentes tipos em nosso sistema.
Logo, quando olhar para as fáscias, imagine estar olhando uma orquestra com os melhores músicos tocando uma música clássica regida pelo melhor maestro do mundo. Lá dentro está acontecendo um rearranjo constante. Ela não está parada. Ela está constantemente mudando sua forma e como elas se interagem entre si, com as miofibrilas de colágeno.
Se esta música não ocorre de maneira afina internamente, o nosso corpo começa a ter problemas. E começamos a perder a capacidade de adaptação desse sistema, ocasionando alterações do mesmo.
Nesta inervação da fáscia, que foi mencionado, encontra-se muitos receptores. Por isso, a fáscia é o maior órgão sensorial do nosso corpo. Então, quanto tocamos a fáscia, estamos estimulando aferências, que por sua vez estimularão respostas.
Veja a tabela abaixo:
Tipo de receptor | Tipo de fibra axonal | Localização anatômica preferencial | Padrão de ativação (estímulo) | Resultados com a estimulação |
OTG | Tipo IB | Junção miotendinosa, aponeuroses, cápsulas articulares e ligamentos | Contração muscular. Alongamentos muito intensos. | Diminuição do tônus muscular |
Pacini e Corpuspulos Paciniformes | Tipo II | Junção miotendinosas, cápsulas articulares, ligamentos espinhais e fáscias parietais | Mudanças rápidas de movimento, pressões e vibrações. | Controle do movimento |
Ruffini | Tipo II | Ligamentos de articulações periféricas, duramáter e outras camadas fasciais do corpo | Pressões sustentadas, forças tangenciais (estiramentos laterais) | Inibição da atividade simpática |
Terminações nervosas livres | Tipo III e IV | Espalhado por todo o corpo, até mesmo nos ossos, tanto no periósteo quanto internamente. | Rápidas e sustentadas mudanças de pressão | Mudanças na vasodilatação, extravasamento do plasma |
Logo, a ideia que iremos tocar uma região que está presa e este toque mecânico soltará esta região, não é bem assim. O que acontece é que estimulamos vários receptores. E cada um desses receptores quando estimulados, gera uma resposta que pode mudar, por exemplo, a ativação do sistema simpático e parassimpático.
Quando estimulamos o ruffini, por exemplo, gera uma resposta de diminuição do tônus simpático. E então, ele aumenta o tônus parassimpático, proporcionando uma maior vascularização da região. Assim, aumenta-se a permeabilidade dos vasos e este líquido pode sair deles e hidratar aquela matriz. E quando esta matriz é hidratada, teremos uma capacidade de deslizamento melhor.
Por tanto, quando tocamos, liberamos e sentimos mais movimento, talvez não seja apenas mecânico (no sentido de “quebrar” uma restrição mecânica). Mas principalmente pode ser via receptores e via resposta do sistema nervoso autônomo.
Pense nisso como mecanismos de ações das suas intervenções. E então, abre-se um leque cada vez maior das possibilidades que podemos fazer com nossos pacientes e alunos.
Apenas a título de curiosidade, existem receptores nas fáscias viscerais que se chamam interoceptores. Eles irão captar informações do que acontece lá dentro do nosso corpo e irão gerar uma resposta.
O mais interessante desses interoceptores, é que eles se comunicam numa região do córtex que se chama córtex insular e este está ligado aos centros límbicos que controlam nossas emoções.
Então, fisiologicamente existe uma relação da nossa fáscia com o nosso sistema nervoso emocional, com a formação das nossa emoções.
Ainda há muito o que falar sobre o sistema fascial, porém este artigo já está ficando longo.
Deixaremos para continuar esta conversa no próximo artigo.
E agora, eu encerro deixando uma pergunta no ar:
“Será que é apenas nosso cérebro que controla tudo em nosso corpo?”
Até nosso próximo artigo.
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